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Entre o colapso e a salvação (2)

ACORDAR PARA A VIDA
Colocado em 19 de julho de 2021

Pedro Viana, membro da direção da Campo Aberto desde 26 de junho último, envia este artigo, que traduziu, como contributo para a rubrica Entre o Colapso e a Salvação [1] neste mesmo espaço digital da associação, que o leitor pode recordar agora também. Por uma questão visual e de espaço, prolongamos nesta parte 2 a rubrica inicial.

O artigo é de autoria de Jeremy Lent (www.jeremylent.com) e foi publicado na revista Kosmos [2], a convite desta, na Primavera de 2021.

Jeremy Lent publicou o livro The Patterning Instinct: A Cultural History of Humanity’s Search for Meaning [3], e terá publicado na primavera deste ano The Web of Meaning: Integrating Science and Traditional Wisdom to Find Our Place in the Universe (New Society Press: North America | Profile Books: UK & Commonwealth).

 

Eu sou a vida que deseja viver,
no meio da vida que deseja viver

Albert Schweitzer

Houve um debate que fascinou os teólogos da Europa cristã durante cerca de um milénio, até tão recentemente como o século XIX. Centrava-se neste imponderável: se tivesse vivido uma vida justa e a sua alma ascendesse ao Céu para toda a eternidade, como poderia alguém permanecer em estado de bem-aventurança se soubesse que um ente querido estava a sofrer um tormento eterno no Inferno? Segundo uma das teorias, Deus apagaria da sua mente as memórias de qualquer pessoa amada que estivesse sob tortura perpétua. Outros teólogos proeminentes, surpreendentemente, sugeriram que os que se encontravam em êxtase celestial regozijar-se-iam de facto quando ouvissem os «gritos dolorosos» dos condenados, sabendo que eles tinham sido justamente castigados.

 

Albert Schweitzer, médico, humanitário, filósofo

O carácter bizarro da questão surge de um paradoxo profundamente enraizado na tradição ocidental: a suposta essência imutável da alma humana. Por milénios, foi dito às pessoas que a sua alma – a sua verdadeira identidade – era uma unidade eterna distinta que seria recompensada por uma vida boa através da residência permanente no Céu com Deus. A sua encarnação corporal, com os seus desejos e sentimentos complexos pelos outros, era uma distração perigosa que os afastava do que realmente importava. Embora a história cristã tradicional da alma possa parecer consignada no essencial à História, ela partilha as mesmas raízes profundas com o nosso sistema capitalista neoliberal dominante, baseado na ideia fundamental do indivíduo como um agente autónomo totalmente distinto do resto da humanidade.

Separação ou unidade?
A história cristã da salvação da alma contrasta de modo marcante com a concepção budista do bodhisattva – alguém que, tendo trabalhado incansavelmente para alcançar a iluminação, chegou ao limiar do nirvana com a oportunidade de libertar-se dos ciclos persistentes de reencarnação. Mas ao invés de optar pela libertação, o bodhisattva opta por retornar ao mundo e trabalhar incessantemente até que todos os seres tenham despertado do sofrimento desnecessário. A princípio, isto parece um ato de altruísmo sem limites. No entanto, uma análise mais atenta revela algo ainda mais profundo. O bodhisattva alcançou a compreensão de que as fronteiras que separam o eu dos outros são meras construções de uma mente condicionada. Nesta «sabedoria perfeita», o bodhisattva reconhece a sua interdependência inerente com todos os seres sencientes. Não está a sacrificar-se para o benefício de outros – despertou para a compreensão de que a própria noção de um eu separado é uma falsidade.

Em última análise, os nossos valores surgem da nossa identidade. Se alguém se define como um indivíduo isolado, sentir-se-á no direito de procurar a sua felicidade às custas dos outros. Alguém que se identifica principalmente com a sua nação não terá escrúpulos em colocar barreiras para impedir que outros entrem. Se a sua identidade se baseia num credo religioso fundamentalista, poderá estar pronto para martirizar-se pela causa. E se se identifica principalmente com a vida na sua totalidade, é provável istanbul escort [4] que devote a sua existência a trabalhar em benefício de todos os seres sencientes.

Das trevas medievais à «ciência» reducionista

A nossa cultura dominante, forjada na Europa medieval e racionalizada pela ciência reducionista a partir do século XVII, diz-nos para encontrar a nossa identidade na separação, tal qual como fizera a alma cristã. Os economistas convencionais postulam que os humanos são mersin escort [5] egoístas, procurando racionalmente maximizar o bem-estar individual. Popularizadores de teorias científicas antiquadas, como Richard Dawkins, propagaram com sucesso a ideia de que somos máquinas movidas por genes egoístas, e qualquer estrutura moral que construamos terá que antalya escort [6] dominar sobre a nossa verdadeira natureza «porque nascemos egoístas».

Aprendemos com a ciência da complexidade que as relações entre as coisas são frequentemente mais importantes do que as próprias coisas. Pense numa fotografia sua quando era criança. Sabe que é o próprio, mas praticamente todas as células dentro de si são agora diferentes das que constituíam aquela criança – e, como mesmo as células que permanecem por toda a vida reconfiguram constantemente os seus conteúdos internos, pode ter a certeza de que nenhuma molécula daquela criança faz ainda parte de si. E, no entanto, sabe que é a mesma pessoa. Tem as memórias para o provar. É o conjunto complexo de relações entre as suas partes distintas que mantém a resiliência que liga a sua personalidade a essa criança. O mesmo princípio é válido para praticamente todos os sistemas naturais: a chama das velas, os rios e os ecossistemas.

Longe de estarmos separados do resto da natureza, fazemos parte de uma interminável rede de vida que remonta a biliões de anos. Os biólogos explicam que, como resultado da homologia profunda, as moscas-das-frutas partilham mais da metade de seus genes com os humanos, e mesmo as bananas partilham 44 por cento. A rica diversidade da vida na Terra surgiu, não do egoísmo desses genes, mas porque diferentes organismos aprenderam a cooperar uns com os outros numa rede incrivelmente complexa de simbiose mutuamente benéfica. E à medida que os humanos evoluíram para uma espécie única, a cooperação foi a sua característica definidora. Únicos entre os primatas, desenvolvemos emoções morais – como a compaixão, a vergonha e um sentido visceral de justiça – que fizeram com que a nossa identidade se expandisse para além do eu individual e incorporasse todo o nosso grupo.

Convergência com as tradições não ocidentais

Embora esta interconexão generalizada possa parecer surpreendente para o pensamento moderno dominante, é fundamental para o sentido de identidade que as tradições não ocidentais fomentam. Quando os membros da tribo Nativa Americana Pés Negros (Blackfoot) se encontram, eles não perguntam «Como está?» Em vez disso, perguntam «Como estão as suas relações?» Da mesma forma, na África Central e do Sul, há um princípio orientador para a vida conhecido por Ubuntu, frequentemente traduzido como «Eu sou porque você é, você é porque eu sou». Em muitas comunidades indígenas, o tipo de comportamento egoísta promovido pelo neoliberalismo seria visto como uma forma de loucura.

Os sábios chineses tradicionais também baseavam a sua bússola moral no fundamento da inter-relação de toda a vida, cuja realização denominavam Ren. O filósofo Cheng Yi declarou que uma pessoa que atinge o estado de Ren «considera o céu, a terra e todas as coisas como um só corpo; não há nada que não seja ele mesmo». Esta compreensão foi expressa de forma inesquecível por Zhang Zai numa das maiores expressões da sabedoria humana, conhecida por Inscrição Ocidental, que começa assim:

O Céu é o meu pai e a Terra é a minha mãe,
e eu, uma criança pequena, encontro-me intimamente colocado entre eles.
O que preenche o universo, considero-o o meu corpo;
o que dirige o universo, considero-o a minha natureza.
Todas as pessoas são meus irmãos e irmãs; todas as coisas são minhas companheiras.

Diante do ataque violento da nossa civilização contra a vida, um número crescente de visionários ocidentais modernos começa a livrar-se do manto de separação que turvou a clareza moral da sociedade dominante – o que Einstein chamou de «uma espécie de ilusão ótica da consciência… uma espécie de prisão para nós» – e a redescobrir a verdade central da nossa identidade partilhada.

 

Arne Naess, filósofo norueguês, fundador da Ecologia Profunda, uma visão pluralista e tolerante que vai às raízes dos problemas

 

Estamos na Natureza e somos da Natureza
O fundador da Ecologia Profunda, Arne Naess, chamou a essa identidade expandida um eu ecológico. «Pode-se dizer que estamos na Natureza, e somos da Natureza», declarou ele, «desde o início de nós mesmos». Para o grande humanitário Albert Schweitzer, que sentiu a sua própria identidade como brotando da vida (conforme expresso na epígrafe deste texto), torna-se evidente um sistema de valores: «Não posso deixar de ter reverência por tudo o que se chama vida. Não posso evitar a compaixão por tudo o que se chama vida. Esse é o início e o fundamento da moralidade.»

Albert Schweitzer, pensador da «Reverência pela Vida»

Uma vez que reconheçamos que somos vida, somos impelidos por um imperativo primordial a devotar o nosso pequeno redemoinho de consciência ao florescimento de toda a vida, da qual somos apenas uma pequena parte. Com um senso de identidade expandido, tal torna-se não tanto uma obrigação moral, mas um instinto natural baseado no impulso da própria vida para florescer. Uma cosmovisão ecológica leva naturalmente a agir por amor, o que pode ser simplesmente entendido como a compreensão e a aceitação de que tudo está relacionado. Um profundo reconhecimento da interdependência pode tornar-se uma base para o que o estudioso budista David Loy chama «ativismo bodhisattva» – em que cada nova situação representa uma oportunidade para nos reorientarmos, da separação individual em direção a uma identidade partilhada.

Parte do «tornar-se num eu ecológico» consiste em encontrar o nosso papel participativo dentro de uma comunidade maior de agentes de mudança, criando o que George Monbiot chama «nova política de pertença». Assim como as árvores numa floresta saudável comunicam entre si e fortalecem-se umas às outras por meio de sua rede micorrízica subterrânea que as torna em uma «wood-wide web», também cada um de nós pode ser mais eficaz como agente da mudança transformadora quando se liga à rede existente de grupos que afirmam a vida e que já opera à nossa volta.

Arne Naess, montanheiro, pensador, ativista, inspirador de muitos

O nosso sentido comum de identidade

Chegamos a um estágio da história humana na Terra em que as decisões tomadas nas próximas décadas determinarão a direção futura, não apenas da humanidade, mas da própria Terra. Em última análise, será uma decisão coletiva baseada no nosso sentido comum de identidade. Embora a nossa civilização tenha destruído grande parte da vida na Terra nas últimas décadas, também temos desenvolvido uma maior consciência coletiva como espécie. Poderemos acordar a tempo de apreciar a nossa identidade coletiva e participar de algo maior do que o nosso eu? Como sugeriu Thích Nhât Hanh, o próximo Buda pode não estar na forma de um indivíduo, mas da comunidade do despertar.

Um reconhecimento total da interligação traz consigo uma miríade de implicações à medida que atravessamos a sua tapeçaria. Alguns caminhos convidam a possibilidades de libertação dos confins dum eu limitado. Outros caminhos abrem avenidas dolorosas de angústia partilhada à medida que nos tornamos íntimos do sofrimento dos outros e da terrível devastação da vida não humana na Terra que se desenrola diante de nós. Despertar para a vida neste século de turbulência está longe de ser uma experiência indolor. É preciso coragem, autenticidade e humildade para estender a mão aos outros quando a enormidade da perda se torna insuportável demais para guardar no próprio coração. Mas, em conjunto, seguir esses caminhos do despertar pode imbuir as nossas vidas de um significado vibrante à medida que participamos da regeneração da Terra, colocando a humanidade e a natureza não humana a caminho do Simbioceno – um período indefinidamente prolongado de florescimento mútuo.